O crepúsculo é a hora da imaterialidade. É ao cair do sol que as sombras se tornam traços alongados sobre o chão. É ao levantar da lua que as formas se difundem, se confundem, em um jogo de cores e matizes, em uma dança meio que desordenada de ícones e símbolos. O crepúsculo é o momento do diáfano, do irreal, do etéreo, do não palpável. É a morte do dia, o nascimento da noite, mas já não é mais dia, e ainda não é noite.
Enfim, o crepúsculo é o reino do vir a ser, um castelo construído com as pedras da virutalidade. A Idade Média é uma zona de crepúsculo. Um tempo em que as fronteiras, tanto geográficas como psicológicas, ainda estão longe de estarem definidas. São séculos que tem a palavra incerteza encrustada nos portais de suas cidades muradas, escrita com letras de fogo por sobre os portais das igrejas e no coração de seus habitantes. E levar essa palavra - incerteza - em consideração é uma condição básica para que ousemos nos aproximar da dita Idade das Trevas.
Esse caráter fragmentário tornar-se-ia explícito em quase todas as instâncias do cotidiano medieval. O próprio país não passava de uma justaposição de feudos, células independentes que, por motivos circunstanciais formavam uma unidade maior.
A guerra também era uma atividade fragmentária, com a Cavalaria valorizando a unidade, a individualidade, um pensamento completamente contrário ao de Roma com suas Legiões, grandes exércitos atacando o inimigo em blocos maciços.
Entretanto, talvez seja no campo das artes que essa cultura do fragmento tenha sua expressão mais marcada. E encontraremos nos textos em prosa desta época, principalmente nas novelas de cavalaria, reflexos claríssimos desse embate entre culturas, uma vez que elementos essencialmente pagãos, provenientes das culturas celta e germânica, que foram passando de geração em geração; e de árabes e turcos, em virtude da invasão e permanência desses povos infiéis em território europeu durante várias décadas, aparecem nesses textos andando lado a lado com os sacramentos da Igreja Romana, com os santos do catolicismo, com a figura do próprio Cristo
Arthur e a Sociedade Celta
As civilizações tendem a escolher seus heróis. E o nome desses heróis, mesmo que ficcionais, fica de tal modo enraizado na história dessas civilizações ao ponto de, a partir de determinado momento, começarem a ser tratados como figuras históricas reais.
A Grécia tem seu inesquecível Odisseu, aquele que após a guerra de Tróia enfrentou a morte mil vezes para retornar ao seu lar; Roma tem Enéias, sobrevivente de Tróia que fundou, sob a proteção dos deuses aquele que viria a ser um dos maiores impérios do Ocidente. A Idade Média não é diferente.
Muitos foram os heróis nascidos sob o signo da civilização medieval e muitos os seus feitos grandiosos. Porém, a palavra grandiosidade não se aplica de maneira tão plena a nenhum deles como se aplica a Arthur e seus cavaleiros. Tem-se notícia de um Arthur histórico. Ele teria sido o líder de uma das inúmeras tribos celtas, que defenderam o território inglês contra as invasões dos saxões.
Entretanto foi o imaginário popular, por motivos não facilmente explicáveis e que não vêm ao caso agora, que o transformou em grande Rei da Inglaterra, aquele que teria unificado todas as tribos que compunham o mosaico inglês em um grande exército que marchou contra os invasores. E o folclore - derivado de folk, da palavra inglesa para povo - vai além, quando lhe atribui uma origem cercada por mistério e feitiçaria, uma espada dotada de poderes mágicos e até mesmo uma morte não definitiva.
Aos poucos, outros personagens que, originalmente não estavam ligados a Arthur e seus cavaleiros foram sendo incorporados à sua côrte, como Tristão de Lionês, Isolda da Irlanda e Marcus da Cornualha.
A lenda de Tristão é de origem celtica, mas sua gênese é incerta e nebulosa, como, aliás, a da maioria dos textos medievais. Entretanto, existem elementos que atestam a ligação entre o texto e os antigos cultos ao Sol daquelas tribos, bem como determinados traços filológicos relativos aos nomes das personagens e a fragmentos de manuscritos mais antigos. Dessa forma, mais por influências externas, uma vez que os escritores dessa época geralmente concebiam seus textos sob encomenda da nobreza, o destino de vários heróis independentes em suas raízes acabou sendo ligado ao de Arthur.
Mas o que realmente importa para o decorrer desta breve análise é a origem celta, e, portanto, pagã desses dois grupos de personagens. Uma vez concebidas por uma cultura completamente diferente da cristã, vigente na Europa durante o período em que foram prosificadas, é natural que essas narrativas apresentem traços bem marcados das crenças, costumes e ideais daquelas sociedades. E, no caso das tribos celtas, estes traços são mais acentuados pelo fato de se tratarem de sociedades matriarcais em que era adotada uma religião de cunho também matriarcal. Outro ponto importante a respeito dessa religião é o fato do sexo ser encarado pelos celtas como uma celebração à vida, uma forma de homenagem à Deusa, à Grande Mãe, ou seja, uma concepção completamente oposta à da Igreja Católica.
Assim, seria inevitável que estas histórias trouxessem consigo toda essa carga ideológica diametralmente opostas a qualquer dos preceitos cristãos. Criou-se então um problema crucial: o que fazer com esse paganismo? Deixá-lo livre, detentor da virtualidade da corrupção da alma do povo, uma vez que essas idéias pagãs eram muito mais atraentes do que o eterno mea culpa do cristianismo? Ou destruí-lo por completo, como seria feito com as chamadas heresias, talvez a maior e mais famosa, a Heresia Albigense?
Nenhum comentário:
Postar um comentário